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Cira e a boca do Mapinguari

  • Foto do escritor: walter tierno
    walter tierno
  • 28 de set. de 2020
  • 9 min de leitura

Este conto é especialmente dirigido a quem já leu Cira e o Velho. Se não é seu caso, o livro está à venda na loja do site da Sisko.com.br Aproveite. É a segunda edição, revista e ampliada.

1

O sol deu uma trégua na torra do telhado do casebre. Lá dentro, o cotoco de Nhá coçou e a alertou da chuva por vir. Seria humilde, quente, secaria logo, mas seria suficiente para aumentar a vida do velho bode por mais alguns anos.

— Pra que esse bode que já não puxa carga, dona Nhá? — perguntava o seu Celestino, caboclo de vida e pele castigadas, viúvo de olhos grandes e atentos.

— Mi faiz companhia — Nhá respondia, todo domingo de manhã, quando ele passava pra colocar enfeite no túmulo da esposa. Hoje, ele trouxe uma rosa, que deve ter pago com um dia de fome.

Dona Nhá entrou para esperar a chuva. Sentou para tirar a presa que servia de pé e massageou a cicatriz. Era feia. Não tinha como pé arrancado com bala de canhão deixar marca bonita.

Riu-se a pensar o que diria seu Celestino se visse o cotoco nu. Não se incomodaria, de certo. Arrastava aqueles olhões por ela, toda vez que se encontravam. Todo domingo, naquele compromisso de levar presente para o túmulo da esposa. Nhá que apresentou os dois, há uns quinze ou vinte anos, não sabia o número certo. A memória não funcionava para isso, ela cria. Contar anos. Para quê? Eles não passavam para ela, que era tocada por Cira e esquecida pela morte. Tinha ainda feição de moça, corpo encarnado pela boa saúde com curvas que alimentavam as fantasias de Celestino e dos homens e até de umas mulheres na vila, mesmo que todos e todas a respeitassem e chamassem de dona. Memória funcionava para muitas outras coisas, sim, como registrar quem jazia embaixo de cada uma daquelas cruzes espalhadas pela vila. Só ela sabia. E nunca errava. Ou assim acreditavam. Como saberiam? O que viam, com certeza, era que, uma vez que ela apontasse uma cruz e dissesse quem estava ali embaixo, nunca se enganava dali em diante. Não confundia, nem trocava. Se inventava, que importava? Reza sempre encontra seu rezado, mesmo que não se esteja sobre o solo correto e defronte a cruz certa.

A chuva caiu e trouxe um acalanto. Vestiu o pé postiço. O bode baliu um berro rouco de velho contente e abriu a boca pra beber direto do céu. Nhá viu antes de fechar a janela. Foi passar um pouco de café, para espantar o sono que o barulho da chuva provocava. Um tamborilar gostoso, sem ritmo, amalucado.

Então, duas pancadas na porta.

— Quiem ié? — perguntou da cozinha, com preguiça de atender visita que chega em hora de chuva.

— Teu amor — respondeu a voz que Nhá conhecia bem.

Abriu um sorriso estalado, recolocou a presa no cotoco e correu para atender. O coração pulou como gato assustado. À sua frente, uma mulher do tamanho do mundo, vestida com couro de cobra, um chapelão para proteger os cabelos vivos e pretos. Na mão, uma mala grande, dessas de viagem. No sorriso, a paixão pela vida que nem as guerras dos de além-mar conseguia arranhar. Nos olhos, o fogo da coragem que nem a loucura e senilidade do mundo conseguia soprar. Era Cira, sua amiga, sua irmã, sua enteada, sua protetora, sua companheira.

O abraço de Cira já era gostoso se recebido sem motivo. Vitaminado pela saudade, então, fazia ranger as costelas, os coração e a alma. Trocaram beijos estalados e sorrisos gozosos. Há quanto não se viam? Vinte anos? Mais? Menos? Nhá não sabia precisar. Não tinha memória para essas coisas. Foi quando os vampiros visitaram a vila, isso ela lembrava.

Que fazia ali, Nhá quis saber. Pedia pousada, Cira respondeu. Estava em uma caçada e a trilha a levara para perto dali. Nhá quis detalhes.

— Outra hora, que é história ainda sendo escrita — Cira respondeu. — Agora, quero saber é como está a vida de minha Nhazinha.

E sentaram à mesa para comer bolo de fubá e tomar café.

2

Dona Nhá contou sobre essa visita de Cira para todos os moradores da vila, nos decênios que seguiram. Era a história que menos gostavam. Perdoavam o atrevimento da velha, porque muito lhe deviam, mas achavam que uma parte da moral do conto ofendia sua fé. Assim era o que ela contava:

Na noite seguinte, Cira mostrou um fio de cabelo. Nhá perguntou de quem era. De Lampião, Cira respondeu. Tinha puxado da cabeça dele, um pouquinho antes da polícia bater a foto que estamparia os jornais das cidades dos de além-mar. Então, ela abriu a mala e tirou a carcaça de Norato de dentro. Botou o fio de cabelo entre os dentes do crânio e sussurrou com os lábios perto dos buracos dos olhos.

A carcaça ganhou vida e falou com uma voz que Nhá calculou pertencer ao antigo dono do fio de cabelo:

— Que você quer agora, bruxa maldita? Deixa eu descansar em paz!

— Quero que repita o que disse ontem.

— Para quê? Não mudei o discurso.

— Quem te matou?

— Foi aquele bicho sujo!

— Não foi a polícia?

— E macaco pode comigo? Foi um monstro de boca na barriga e fome de carne de gente. Já falei. Agora, me deixa descansar.

Cira resgatou o fio de cabelo e olho para Nhá com um sorriso de satisfação.

— Viu só?

Nhá não entendera nada. Esperou a amiga perceber sua ignorância.

— Mapinguari, Nhá!

— Num sei qui ié issu, naum…

— Mapinguari é um bicho raro, Nhá. Quando um da-terra envelhece demais, tem força de menos pra viver e demais pra morrer, vira mapinguari. Um bicho violento, cheio de fome por carne humana. Come tudo da pessoa, só deixa arma e cabeça. É isso que estou caçando.

— Pa quê?

— Não entendeu, Nhazinha? Mapinguari existe entre vida e morte. Não está nem uma coisa, nem outra. Nem vivo, nem morto.

— I daí?

— Daí, Nhazinha, que é como se consegue falar com a menina morte. Com a voz de um mapinguari.

— Ma purquié qui vassuncê quié falá cá minina morti?

— Pra pedir perdão pela ofensa de minha mãe, Nhazinha.

3

Cira encontrou o mapinguari, dois dias depois. Estava mesmo ali por perto, arrastando a gordura pela caatinga. Cansado pela existência, castigado pelo sol, enlouquecido por algum vício. Na certa, de álcool.

Cira não deu bola para a tristeza que era a figura da criatura, toda entregue a dores, abstinências e cansaço. Atacou com a carcaça de Norato sobre o ombro esquerdo e a faca de prata na mão oposta.

Pulou de trás de um arbusto espinhento, soltando o riso de sereia que herdara da mãe. Usava a roupa de couro que herdara da pele de seu cobra-pai. Pisou o lábio inferior da criatura, que gritou horrorizada e louca. Era forte, a desgraçada, mas há muito a loucura lhe roubara a agilidade. Quando percebeu a danação que se jogava sobre ela, já era tarde e tomou uma cutelada que entrou pelo pescoço, enquanto os dentes de Norato mastigavam seus olhos. Caiu com dor e desespero e morreu antes de ter chance de morder a perna de Cira, que o toque de sua língua prometia saborosa.

Cira ergueu-se ao lado de sua presa e recuperou o fôlego. Ao longe, ouviu o canto de uma carcará que contava a novidade que testemunhara. Sua voz viajou pelo vento e contou a todos que tivessem poder e sabedoria para ouvir que a filha de Guaracy matara um quase espírito da-terra.

— Estava corrompido por bebida de além-mar — Cira cantou para o vento, em resposta. Uma ponta de culpa palpitou em seu peito. Teria feito errado? Não. Quanto demoraria para a fome daquele mapinguari enlouquecido se virar contra um curumim, uma sereia, um animal rei, uma fera rainha?

Ela então puxou a língua da criatura, cortou um grande naco e deu a Norato, que abocanhou e disse:

— Por que vassuncê matou meu mapinguari? — Era uma voz envelhecida e falava com um dos dialetos da-terra. — Mapinguari protege, devora gente ruim.

— Seu mapinguari estava viciado em alguma coisa do branco de além-mar.

— Vinho. É direito dele.

— Seu mapinguari fazia serviço para o brando de além-mar.

— Justiça. Era pela crença do meu coração.

— Crença?

— Mapinguari fazia obra de Deus.

— O deus branco de além-mar?

— Só tem um.

— Quem era o teu mandante?

— Morreu faz tempo. Tá no céu.

— Quem era?

Nunca Cira tinha visto uma língua mastigada pelo crânio de Norato resistir tanto. A resposta queria sair, mas o espírito que a magia tinha chamado resistia em entregar.

— Fala!

A carcaça de Norato tremia toda, os ossos chacoalhavam como brinquedo de curumim. Então, o que Cira mais esperava aconteceu. Uma menina de vestido azul-marinho e cabelo vermelho apareceu, batendo os pés.

— Você?! Aah, traiçoeira. Usando voz de mapinguari pra me ver?

Cira esqueceu a informação que queria tirar do espírito e jogou-se de joelhos à frente da menina Morte.

Carinha de nojo, olhar de desdém, pose de mimo eterno, a menina desconfiou da humildade da filha de Guaracy, bruxa ofensora que tinha tido a ousadia de desafiar o caminho das coisas deste mundo e dos próximos.

— Quer pedir perdão, é isso? — rosnou, enfim.

— Eu peço perdão pela minha mãe, senhora. Não foi para te ofender que ela evocou o derradeiro feitiço. Foi o devaneio de entre mundos. Ela te ama e venera. É árvore, agora. Mas deixa que ela siga o caminho natural, quando não mais o for. Eu suplico.

Menina Morte ruminou alguns pensamentos, deu de ombros, revirou os olhos e, por fim, permitiu-se sorrir.

— Está bem, está bem… Não quero que digam por aí que não sou justa. Você pediu bem. — A menina fechou os olhos por alguns segundos, estalou os dedos e: — Pronto! Sem mais maldição para sua mãe. Quando a árvore morrer, eu a busco, como qualquer outra.

— Obrigada.

Um sorriso malicioso se abriu no rosto da menina:

— Agoooooora… Vamos ouvir o SEU pedido de perdão. E que seja muito bom.

Cira, ainda de rosto baixo e coberto pelos cabelos e pela humildade, levantou lentamente a mão esquerda, com a palma para cima. A menina deu dois passos à frente, sorriso satisfeito, e ergueu a mãozinha direita para receber o cumprimento.

— Está bem. Não sou tão cheia de mania. Pode suplicar. Se humilhe, se humi…

Seu pedido cresceu em estridência para um grito agudo que fez o mundo todo tremer. Cira, veloz como uma cobra, agarrou o indicador da menina e, com sua faca de prata, separou-o da mãozinha. Um esguicho de sangue estelar tingiu o solo e o rosto de Cira. A menina pulou para trás.

— Para mim, peço apenas este presente — Cira disse, ao levantar o rosto e sorrir.

A menina a xingou de tudo quanto fosse palavrão, em tudo quanto fosse língua de tudo quanto fosse mundo. E quando levantou sua pequena foice para ameaçar, Cira levantou o pedaço recém cortado e disse:

— Que maldição vai me dar? Uma pior do que já tenho? E que faço com um pedaço seu?

— Nããããão.

— Sim! Tenho um pedaço seu. Entregarei quando EU quiser. Ou te envenenarei com ele.

— Sabe o que acontece se a Morte morrer?

— Li no livro de minha mãe, uma vez. Pensa que me importo? É teu o destino que me pertence, não mais o meu a ti. Agora, vá! Quando precisar de tua visita, a chamarei. Quando precisar de teu favor, pedirei.

— Maldita, mil vezes maldita! Brinque comigo, para ver! Brinque! Que aproveite essa tua vantagem. É pouca. Menor do que pensa. E quando gastar esse teu trunfo… ah… como vou me fartar com teu sofrimento, sua desgraçada!

Dito isso, a Morte xingou mais um pouco, esperneou, gritou, birrou. Cira, cansada de tanta cena, apenas mordiscou a ponta do dedo. A menina gritou de susto e dor e sumiu dentro de um raio que subiu para o céu. Atrás dela, deixou um rastro de sangue e lágrimas que caiu dias e dias e formo um açude mágico.

4

À noite, de volta ao casebre, Cira tirou o dedo de seu bornal e mostrou a Nhá, quando terminou de contar sua aventura.

— Ma vassuncê num ia pedi perdaum?

— E pedi, Nhá. Para minha mãe.

— I vassuncê?

— Eu, agora, tenho isto.

— I da memu pa invenená a minina?

— No livro de minha mãe, dizia que a menina Morte não é só mimada. Também é ingênua. Que ela acredita que pedaços dela podem ser usados para prejudicá-la. Ela acredita até que pode morrer.

— Num podi?

— Não, Nhazinha. Não pode. Nem dor posso causar ao morder o dedo. E, mesmo assim, por acreditar que sim, ela a sentiu quando o fiz.

— Intaum, vassuncê agora tem coisa pa barganhá ca morti?

— Sim. Não tão valiosa quanto ela pensa, por isso, se eu o fizer, tenho que cuidar para fazer um bom negócio. Pois barganha construída com blefe é um jogo perigoso. Mas não foi só por isso que cacei o mapinguari e o dedo da menina.

— Vassuncê sabi queim mandava neli?

— Não. Mas sei que é coisa de padre.

Quando Nhá contava essa parte da história, mudava um bocadinho. Botava sobre a dúvida de Cira um nome de padre que quisesse acusar. Já jogou a culpa em Cícero, no Papas, em bispos e até em pastores. Em qualquer um que, na época em que narrasse esse conto, tivesse desafeto. Se Cira um dia disse quem era o mandante do mapinguari, a verdade se perdeu no rancor de dona Nhá.

Quanto ao verdadeiro propósito de Cira:

— Eu queria esse dedo por outro motivo além de barganhar, quando isso me interessar. Sabe, Nhazinha, que matei muita gente que acreditei ser a encarnação do Velho?

— Sabia naum.

— Pois é. Matei, sim. Qualquer homem mau que cruzasse meu caminho, eu já desconfiava. Lancei ditador, fatiei general, empurrei assassino, estrangulei carrasco, trucidei político. Sem certeza, só pra garantir.

— I vassuncê nunca qui tevi certeza?

— Não, Nhazinha. Talvez, no meio desse tanto de gente, eu tenha pego meu inimigo. Talvez, ele ainda esteja por aí, reencarnado. — Com um sorriso, ela levantou o dedo até a altura dos olhos. — Mas, agora, terei certeza. Porque não há melhor ferramenta para me apontar uma alma do que este dedinho da menina morte.

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